terça-feira, 7 de julho de 2009

Esta noite sonhei com Mário Lino

Por Miguel Sousa Tavares:

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Segunda-feira passada, a meio da tarde, faço a A-6, em direcção a Espanha e na companhia de uma amiga estrangeira; quarta-feira de manhã, refaço o mesmo percurso, em sentido inverso, rumo a Lisboa. Tanto para lá como para cá, é uma auto-estrada luxuosa e fantasma. Em contrapartida, numa breve incursão pela estrada nacional, entre Arraiolos e Borba, vamos encontrar um trânsito cerrado, composto esmagadoramente por camiões de mercadorias espanhóis. Vinda de um país onde as auto-estradas estão sempre cheias, ela está espantada com o que vê:

- É sempre assim, esta auto-estrada?

- Assim, como?

- Deserta, magnífica, sem trânsito?

- É, é sempre assim.

- Todos os dias?

- Todos, menos ao domingo, que sempre tem mais gente.

- Mas, se não há trânsito, porque a fizeram?

- Porque havia dinheiro para gastar dos Fundos Europeus, e porque diziam que o desenvolvimento era isto.

- E têm mais auto-estradas destas?

- Várias e ainda temos outras em construção: só de Lisboa para o Porto, vamos ficar com três. Entre S. Paulo e o Rio de Janeiro, por exemplo, não há nenhuma: só uns quilómetros à saída de S. Paulo e outros à chegada ao Rio. Nós vamos ter três entre o Porto e Lisboa: é a aposta no automóvel, na poupança de energia, nos acordos de Quioto, etc. - respondi, rindo-me.

- E, já agora, porque é que a auto-estrada está deserta e a estrada nacional está cheia de camiões?

- Porque assim não pagam portagem.

- E porque são quase todos espanhóis?

- Vêm trazer-nos comida.

- Mas vocês não têm agricultura?

- Não: a Europa paga-nos para não ter. E os nossos agricultores dizem que produzir não é rentável.

- Mas para os espanhóis é?

- Pelos vistos...

Ela ficou a pensar um pouco e voltou à carga:

- Mas porque não investem antes no comboio?

- Investimos, mas não resultou.

- Não resultou, como?

- Houve aí uns experts que gastaram uma fortuna a modernizar a linha Lisboa-Porto, com comboios pendulares e tudo, mas não resultou.

- Mas porquê?

- Olha, é assim: a maior parte do tempo, o comboio não 'pendula'; e, quando 'pendula', enjoa de morte. Não há sinal de telemóvel nem Internet, não há restaurante, há apenas um bar infecto e, de facto, o único sinal de 'modernidade' foi proibirem de fumar em qualquer espaço do comboio. Por isso, as pessoas preferem ir de carro e a companhia ferroviária do Estado perde centenas de milhões todos os anos.

- E gastaram nisso uma fortuna?

- Gastámos. E a única coisa que se conseguiu foi tirar 25 minutos às três horas e meia que demorava a viagem há cinquenta anos...

- Estás a brincar comigo!

- Não, estou a falar a sério!

- E o que fizeram a esses incompetentes?

- Nada. Ou melhor, agora vão dar-lhes uma nova oportunidade, que é encherem o país de TGV: Porto-Lisboa, Porto-Vigo, Madrid-Lisboa... e ainda há umas ameaças de fazerem outro no Algarve e outro no Centro.

- Mas que tamanho tem Portugal, de cima a baixo?

- Do ponto mais a norte ao ponto mais a sul, 561 km.

Ela ficou a olhar para mim, sem saber se era para acreditar ou não.

- Mas, ao menos, o TGV vai directo de Lisboa ao Porto?

- Não, pára em várias estações: de cima para baixo e se a memória não me falha, pára em Aveiro, para os compensar por não arrancarmos já com o TGV deles para Salamanca; depois, pára em Coimbra para não ofender o prof. Vital Moreira, que é muito importante lá; a seguir, pára numa aldeia chamada Ota, para os compensar por não terem feito lá o novo aeroporto de Lisboa; depois, pára em Alcochete, a sul de Lisboa, onde ficará o futuro aeroporto; e, finalmente, pára em Lisboa, em duas estações.

- Como: então o TGV vem do Norte, ultrapassa Lisboa pelo sul, e depois volta para trás e entra em Lisboa?

- Isso mesmo.

- E como entra em Lisboa?

- Por uma nova ponte que vão fazer.

- Uma ponte ferroviária?

- E rodoviária também: vai trazer mais uns vinte ou trinta mil carros todos os dias para Lisboa.

- Mas isso é o caos, Lisboa já está congestionada de carros!

- Pois é.

- E, então?

- Então, nada. São os especialistas que decidiram assim.

Ela ficou pensativa outra vez. Manifestamente, o assunto estava a fasciná-la.

- E, desculpa lá, esse TGV para Madrid vai ter passageiros? Se a auto-estrada está deserta...

- Não, não vai ter.

- Não vai? Então, vai ser uma ruína!

- Não, é preciso distinguir: para as empresas que o vão construir e para os bancos que o vão capitalizar, vai ser um negócio fantástico! A exploração é que vai ser uma ruína - aliás, já admitida pelo Governo - porque, de facto, nem os especialistas conseguem encontrar passageiros que cheguem para o justificar.

- E quem paga os prejuízos da exploração: as empresas construtoras?

- Naaaão! Quem paga são os contribuintes! Aqui a regra é essa!

- E vocês não despedem o Governo?

- Talvez, mas não serve de muito: quem assinou os acordos para o TGV com Espanha foi a oposição, quando era governo...

- Que país o vosso! Mas qual é o argumento dos governos para fazerem um TGV que já sabem que vai perder dinheiro?

- Dizem que não podemos ficar fora da Rede Europeia de Alta Velocidade.

- O que é isso? Ir em TGV de Lisboa a Helsínquia?

- A Helsínquia, não, porque os países escandinavos não têm TGV.

- Como? Então, os países mais evoluídos da Europa não têm TGV e vocês têm de ter?

- É, dizem que assim entramos mais depressa na modernidade.

Fizemos mais uns quilómetros de deserto rodoviário de luxo, até que ela pareceu lembrar-se de qualquer coisa que tinha ficado para trás:

- E esse novo aeroporto de que falaste, é o quê?

- O novo aeroporto internacional de Lisboa, do lado de lá do rio e a uns 50 quilómetros de Lisboa.

- Mas vocês vão fechar este aeroporto que é um luxo, quase no centro da cidade, e fazer um novo?

- É isso mesmo. Dizem que este está saturado.

- Não me pareceu nada...

- Porque não está: cada vez tem menos voos e só este ano a TAP vai cancelar cerca de 20.000. O que está a crescer são os voos das low-cost, que, aliás, estão a liquidar a TAP.

- Mas, então, porque não fazem como se faz em todo o lado, que é deixar as companhias de linha no aeroporto principal e chutar as low-cost para um pequeno aeroporto de periferia? Não têm nenhum disponível?

- Temos vários. Mas os especialistas dizem que o novo aeroporto vai ser um hub ibérico, fazendo a trasfega de todos os voos da América do Sul para a Europa: um sucesso garantido.

- E tu acreditas nisso?

- Eu acredito em tudo e não acredito em nada. Olha ali ao fundo: sabes o que é aquilo?

- Um lago enorme! Extraordinário!

- Não: é a barragem de Alqueva, a maior da Europa.

- Ena! Deve produzir energia para meio país!

- Praticamente zero.

- A sério? Mas, ao menos, não vos faltará água para beber!

- A água não é potável: já vem contaminada de Espanha.

- Já não sei se estás a gozar comigo ou não, mas, se não serve para beber, serve para regar - ou nem isso?

- Servir, serve, mas vai demorar vinte ou mais anos até instalarem o perímetro de rega, porque, como te disse, aqui acredita-se que a agricultura não tem futuro: antes, porque não havia água; agora, porque há água a mais.

- Estás a dizer-me que fizeram a maior barragem da Europa e não serve para nada?

- Vai servir para regar campos de golfe e urbanizações turísticas, que é o que nós fazemos mais e melhor.

Apesar do sol de frente, impiedoso, ela tirou os óculos escuros e virou-se para me olhar bem de frente:

- Desculpa lá a última pergunta: vocês são doidos ou são ricos?

- Antes, éramos só doidos e fizemos algumas coisas notáveis por esse mundo fora; depois, disseram-nos que afinal éramos ricos e desatámos a fazer todas as asneiras possíveis cá dentro; em breve, voltaremos a ser pobres e enlouqueceremos de vez.

Ela voltou a colocar os óculos de sol e a recostar-se para trás no assento. E suspirou:

- Bem, uma coisa posso dizer: há poucos países tão agradáveis para viajar como Portugal! Olha-me só para esta auto-estrada sem ninguém!
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10 comentários:

Anónimo disse...

GENIAL...
Fia

Nuna disse...

Perspicaz e pretensioso... à Miguel Sousa Tavares, não é? :)

Nuna disse...

Já agora, esse senhor é o mesmo que num artigo do Público, há uns anos atrás, justficava a sua oposição à adopção de crianças por casais homossexuais da seguinte forma:

"Já viram elefantes gays ou focas lésbicas a criarem filhos em comum? [...] Peçam o que é legitimo pedir - igualdade de direitos conjugais e sucessórios, por exemplo -, mas não peçam o que não é natural pedir e ofende os direitos legítimos de terceiros inocentes".

A partir do momento em que li isto passei a ter dificuldade em levar a sério uma criatura que ousa utilizar tal argumentação.

Anónimo disse...

Pois é minha cara...infelizmente há por aí fora muita gente estupida e parva e com argumentos de caca...Melhor assim porque pelo menos existe sempre alguém para desprezar...eheheh!
De qualquer forma, este texto é muito bom mesmo!
Fia

MigNunes disse...

Nao concordo com esse argumento, obviamente. Mas também nao estou de acordo com a adopçao de crianças por casais homossexuais. NAo tenho grande argumentação para a minha opniao, mas acho que é fundamental uma criança ter o direito a um ambiente com dois polos distintos: feminino e masculino.

Anónimo disse...

Não vou, não quero nem pretendo alimentar esta discussão, mas tenho que responder ao teu post Miguel...isso quer dizer que uma mãe solteira não pode/não deve ter um ou vários filhos? e os pais que ficam sozinhos? também não podem ter esse direito?
Cada vez mais de deparo com uma engraçada realidade que cada vez mais é frequente, pessoas homossexuais casadas e com filhos e que traem os respectivos à força toda mas que mantêm uma fachada...deve ser exactamente para que as crianças tenham o dito polo masculino e feminino que tanto falas...
Enfim...ãqui me fico!
Fia

MigNunes disse...

Oh Fia, não é pra levar á letra o que disse. Repara que eu afirmei de inicio q ia estar mal argumentada. De qualquer modo "pais sozinhos" refere-se a que? pai e mae ou a pai e pai. É que se for a 1ª nao compreendo o teu ponto de vista até pq a adopçao faz-se aos pontapés. no casa da segunda temos de ver bem a realidade onde nos encontramos.

Curtias adoptar uma criança e anos mais tarde na escola teres a criança gozada á força toda por ter "duas mães" e chamarem-lhes nomes?

O que defendo é: um passo de cada vez. As mentalidades teem de aceitar em 1º lugar a homossexualidade como sendo algo natural e legalizar o casamento/uniao entre pessoas do mesmo sexo. E conta que isso em portugal ainda vai demorar na boa uns 10 anos. E a aceitaçao geral da populaçao vai demorar uns 20. Adopção? dá-lhe 30.

Unknown disse...

30 anos para parar esta discriminação estúpida e - até segundo as tuas palavras - mal fundamentada parece-me um bocado ambicioso por defeito, não? 30 anos de milhares de pessoas a continuarem a sofrer na pele por uma "opção" pela qual não "optaram" (aqui, leia-se, não me parece uma questão de opção), não faz sentido.
É preciso ser ambicioso e lutar por esses mesmos direitos para esta e outras minorias que sofrem injustamente deixem de, no melhor cenário, ser encaradas como uma minoria, por deixar de haver distinção. E o argumento da "aceitação" só retarda o processo.

Não?

MigNunes disse...

Claro pah. Só nao te esqueças que em que realidade estamos. Tanto temos gente culta q aceita perfeitamente isso, como temos malta que nem sabe quem eram os candidatos ás europeias. E é preciso ver q a igreja continua a ter grande influencia não so na nossa sociedade como na politica.

Por mim era legalizar ja isso tudo. Em relação á adopçao julgo necessário muitos estudos cientificos e psicológicos.

Anónimo disse...

Mto se discute por cá à pala do Tavares cujo argumento contra a adopção por homossexuais é parvo, mas acho que o de que a nossa sociedade ainda nao sabe lidar bem com a situação (Nunes) é bem lembrado.
Eu sou a favor tb da igualdade entre homens e mulheres homossexuais. Porque uma mulher lésbica pode ter 1 filho qdo quiser (inseminaçao ou modo tradicional) e ficar com a criança e ninguém a tira só por ela morar com outra mulher/namorada (conheço 2 casais assim e elas são felizes pk 1 tem direitos parentais biológicos a 100%).
Já um homem não pode e é injusto c tantas crianças abandonadas e adultos saudaveis. É 1 situação delicada, mas fomentará novas perspectivas em crianças que serão adultos + tolerantes e fortes contra preconceitos imbecis. Nao sendo 1 doença contagiosa, não vejo muito perigo.
Até lá rezemos pela redenção dos pecadores.